terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Discurso do presidente do Sexto Congresso Mundial de Bioética, Volnei Garrafa, para a abertura do encontro


BIOÉTICA, PODER E INJUSTIÇA : POR UMA ÉTICA DE INTERVENÇÃO

Volnei Garrafa*

A partir dos anos 90, novas perspectivas teóricas críticas emergiram no contexto da bioética. Esses questionamentos trouxeram para a pauta dos debates mundiais aspectos até então consideradas apenas tangencialmente pelas abordagens tradicionais. Problemas persistentes constatados no quotidiano dos países periféricos - como a exclusão social e a concentração de poder; a globalização econômica internacional e a evasão dramática de divisas das nações mais pobres para os países centrais; a inacessibilidade dos grupos economicamente vulneráveis às conquistas do desenvolvimento científico e tecnológico; e a desigualdade de acesso das pessoas pobres aos bens de consumo básicos indispensáveis à sobrevivência humana com dignidade, entre outros aspectos, - passaram a fazer parte obrigatória da pauta dos pesquisadores que desejam trabalhar com uma bioética transformadora, comprometida e identificada com a realidade dos países chamados "em desenvolvimento" .

Tomando como ponto de partida a constatação desses indesejáveis indicadores de desequilíbrio social que deságuam em paradoxos éticos insustentáveis, é que a busca de respostas práticas e éticas, com base em referenciais teóricos mais apropriados, tornou-se prioritária para os países pobres do Hemisfério Sul. A partir da construção de um novo arcabouço crítico e epistemológico dialeticamente engajado às necessidades das maiorias populacionais excluídas do processo desenvolvimentista, os dilemas rotineiramente detectados pelos especialistas periféricos da bioética poderão passar a ser enfrentados com mais objetividade.

O propósito desta mensagem, portanto, é procurar avançar no contexto internacional, a partir da América Latina, com a proposta de discussão de uma bioética que tenha como referência uma perspectiva periférica às abordagens bioéticas tradicionais, principalmente o principialismo, de forte conotação anglo-saxônica. Este novo enfoque teórico propõe uma aliança concreta com o lado historicamente mais frágil da sociedade, incluindo a re-análise de diferentes dilemas, entre os quais: autonomia versus justiça/equidade; benefícios individuais versus benefícios coletivos; individualismo versus solidariedade; omissão versus participação; mudanças superficiais e temporárias versus transformações concretas e permanentes.

SISTEMATIZANDO CONCEITOS E JUSTIFICANDO A PROPOSTA

O processo de construção do arcabouço teórico que sustenta esta proposta vêm sendo desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Brasília, Brasil e algumas das suas categorias são apresentadas a seguir.

A bioética das situações persistentes relaciona-se com a historicidade das condições que teimosamente persistem entre as sociedades humanas desde a Antiguidade, como a exclusão social, a discriminação das mulheres, o racismo, a iniquidade na alocação e distribuição de recursos sanitários, o abandono de crianças e idosos, o aborto, a eutanásia, entre outras. Já a bioética das situações emergentes diz respeito às questões decorrentes ao acelerado desenvolvimento científico e tecnológico que surgiram (emergiram) nos últimos cinqüenta anos, entra as quais encontram-se as novas técnicas de reprodução (incluindo a clonagem reprodutiva e a terapêutica), o Projeto Genoma Humano e os avanços no campo da engenharia genética, os transplantes de órgãos e tecidos humanos, etc.

Outras expressões utilizadas são países centrais e países periféricos. O "central", no caso, significa os países do mundo onde os problemas básicos com saúde, educação, alimentação, moradia e transporte já estão resolvidos e/ou bem encaminhados quanto a sua solução. Os "periféricos", por outro lado, são aqueles que os organismos internacionais costumam chamar de "em desenvolvimento", onde a maioria da população continua lutando pela obtenção de condições mínimas de sobrevivência e dignidade e, principalmente, onde a concentração de poder e renda encontram-se nas mãos de um número cada vez menos representativo de pessoas. O fenômeno da globalização econômica vêm agravando as diferenças entre ricos e pobres em todo planeta, embrutecendo ainda mais as relações.

Os estudiosos da bioética que trabalham em diferentes contextos sociais, com privilegiados/incluídos e desprivilegiados/excluídos, acabam por ter que enfrentar conflitos e problemas de origens, dimensões e complexidade completamente diferentes. As interpretações dos fatos e as respostas a eles, portanto, não podem ser iguais. Deve-se ter em mente que, entre outras razões, a bioética surgiu para reforçar o lado mais frágil de qualquer inter-relação historicamente determinada. Frente a isto é fundamental que a bioética dos países periféricos, e os da América Latina particularmente, passe a não aceitar mais o crescente processo de despolitização dos conflitos morais. O que está acontecendo, muitas vezes, é a utilização de justificativas bioéticas como "instrumentos", como "ferramentas" metodológicas, que acabam servindo de modo neutral apenas para a leitura e interpretação (acríticas) dos conflitos, por mais dramáticos que sejam. Dessa maneira, é atenuada (e até mesmo anulada, apagada...) a gravidade das diferentes situações, principalmente aquelas coletivas e que, portanto, acarretam as mais profundas distorções sociais.

Para recordar a necessidade da bioética dedicar-se com mais vigor ao tema das desigualdades sociais, basta recordar que existem lugares como Serra Leoa, Malawi ou Burkina Fasso, na África, onde a expectativa média de vida ao nascer mal chega aos 40 anos de idade, enquanto no Japão, Estados Unidos e em alguns países europeus já passa dos 80 anos. Enquanto em Uganda o investimento anual per capita em saúde alcança alguns poucos dólares por ano e na América Latina oscila entre os 200 e 400 dólares, na maioria dos países da Europa Ocidental ultrapassa os 2 mil dólares e nos Estados Unidos da América do Norte já se aproxima dos 3 mil.

Dentro da mesma linha de exemplos, em 1998 foram gastos em pesquisas com medicamentos contra o HIV/Aids, cinqüenta vezes mais recursos do que no combate à malária, quando se sabe que ambas doenças vitimaram, naquele ano, um número semelhante e aproximado de 2 milhões de pessoas em todo mundo. A diferença para essa absurda iniquidade no investimento de recursos está no fato da Aids ter logrado visibilidade pública internacional pelos enormes danos e prejuízos causados indistintamente a países ricos e pobres. Já a malária é doença caracteristicamente "terceiro mundista", atacando quase que exclusivamente pobres. Por isso, não existe interesse econômico dos grandes laboratórios privados e públicos dos países centrais em investir em caras imunizações e medicamentos para quem não possa pagar por eles. O que define as prioridades não são as necessidades detectadas na realidade concreta: é o mercado. E o mercado tem se mostrado a cada ano mais perverso, com regras cada dia mais protecionistas para os países ricos e, portanto, mais insensível .

As disparidades, desigualdades e a inacessibilidade da maioria da população mundial a uma existência digna revelam absoluta ausência de ética. Diante das pandemias e mortandades verificadas principalmente na África e mostradas pela televisão ao vivo e a cores para todo mundo - quando o "desenvolvimento" presumivelmente já havia aportado em todos os cinco continentes - as justas preocupações animalistas de Peter Singer soam anacrônicas e fora de lugar. E os "estranhos morais" de H. T. Engelhardt Jr. correm o risco de virem a ser re-denominados de "impossibilitados morais" ou "excluídos morais" já que o termo "estranhos" é demasiado suave (ou demasiado frágil...) para espelhar as absurdas desigualdades entre ricos e pobres, entre incluídos e excluídos, entre "centrais" e "periféricos".

Neste sentido, vale resgatar que o significado de equidade não é o mesmo de igualdade. Igualdade é a conseqüência desejada da equidade, sendo esta apenas o ponto de partida para aquela. Ou seja, é o reconhecimento das diferenças e a supressão das necessidades diversas dos sujeitos sociais que possibilita alcançar a igualdade. A igualdade, tal como proposta pela revolução francesa e incorporada às estruturas simbólicas do Ocidente há mais de 200 anos, não pode continuar sendo o ponto de partida ideológico para a construção de relações éticas. Vista de forma exclusivamente horizontalizada, que tende a anular as diferenças, ela ignora as desigualdades concretas e aviltantes que marcam hoje a vida da maior parte das populações do mundo. A igualdade é o ponto de chegada da justiça social, referencial dos direitos humanos mais elementares, onde o objetivo futuro é o reconhecimento da cidadania .

A busca da equidade, o reconhecimento de necessidades diversas em sujeitos também diferentes para atingir objetivos iguais, é um dos caminhos da ética prática face à necessidade de expandir o acesso aos direitos humanos universais. A garantia do direito a uma vida digna, representado nessa discussão pela possibilidade de acesso à saúde e demais bens indispensáveis à sobrevivência e à qualidade de vida no mundo pós-moderno.

Diante de todas estas questões éticas propomos para os países periféricos um novo enfoque bioético, baseado em práticas intervencionistas, diretas e duras, que instrumentalizem a busca da diminuição das iniquidades. Em reunião da Organização Mundial da Saúde realizada em Genebra em 2001, o governo brasileiro deu um exemplo concreto neste sentido ao propor à assembléia - e ver sua proposta aprovada - que em casos de riscos para a saúde pública o acesso dos países aos medicamentos passasse a ser considerado uma questão de direitos humanos, princípio que , posteriormente, foi referendado após duros debates em reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) realizada em Doha, Quatar (novembro de 2001).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Representativo número de filósofos identifica as idéias de ética e moral como sinônimas. Ambas dizem respeito ao padrão ideal de comportamento para a otimização da vida social. Embora não seja o objetivo desta apresentação analisar as raízes históricas da identificação destas duas classificações, consideramos necessário estabelecer uma distinção entre elas, partindo da maneira como valoramos esses conceitos.

Nas representações coletivas que conformam o entendimento e a utilização destas categorias, percebemos que a principal diferença entre elas reside no fato de se atribuir à primeira (ética) um caráter abrangente, que lhe confere a qualidade de fenômeno universal e generalizável e à segunda (moral) as características de fenômeno cultural específico, relacionado aos valores de cada grupo social. Reconhecemos a moral como plural, enquanto creditamos à ética as características de unidade e transcendência. Os valores que orientam a construção da ideia de ética, segundo essa crença, implicam em seu reconhecimento e aplicação por grupos sociais com parâmetros morais diversos. Assim, a existência da discussão ética implicaria em transcender partidarismos e interesses de grupos. Se no nível simbólico as idéias de ética e moral parecem mais ou menos claras, na prática, o que se tem constatado, é a enorme dificuldade de encontrar esses pontos de intersecção.

A compreensão da diversidade moral das sociedades humanas só começou a ser entendida nas últimas décadas. Antes disso, as diferenças morais entre elas ou entre os grupos em um mesmo contexto eram sistematicamente silenciadas. Sociedades, culturas, ideologias e moralidades foram classificadas por uma perspectiva estritamente materialista, que considera apenas o desenvolvimento tecnológico e entendidas como patamares de um processo evolutivo monolítico. Apesar dessa visão niveladora, as diferenças morais de cada uma das sociedades subsistiram como pano de fundo ao avanço do capitalismo.

Calcada no desenvolvimento científico e tecnológico, a lógica capitalista transformou as diversas sociedades em meros mercados e as moralidades tornaram-se obstáculos a seu projeto de crescimento ilimitado. As propostas de "double standard" para testagem de novos medicamentos em países ricos e pobres e que vêm originando tantas discussões e protestos internacionais nos últimos anos, são prova disso, uma vez que a essência da proposta incide na flexibilização dos parâmetros éticos para as pesquisas com seres humanos. E a ética não é quantitativa. Não se pode ser, por exemplo, 70% ético. A ética é ou não é.

Por outro lado, a distribuição da riqueza e o consumo de recursos são inversamente proporcionais à divisão numérica da população. Mesmo sendo numericamente a minoria, as sociedades dominantes buscaram anular ideológica e moralmente a legitimidade das demais, na tentativa de impor um padrão único. Na prática, as diferentes moralidades foram subjugadas no processo de expansão e dominação econômica. A produção de alimentos no mundo atual, por exemplo, suplanta as necessidades nutricionais dos 6 bilhões de habitantes do planeta. No entanto, por problemas distributivos, é incontável o contingente de pessoas que ainda morrem de fome ou de suas conseqüências.

Se o conhecimento mais extenso das diferenças morais entre as sociedades do mundo ressaltou a ideia de pluralidade, ao mesmo tempo reforçou a noção de interdependência e totalidade. As tecnologias desenvolvidas ampliaram as possibilidades de comunicação e troca de informações, criando uma cultura de massa pronta para atender as exigências sempre crescentes do consumo. A crença da lógica capitalista de que os fins justificam os meios legitima a apropriação de recursos naturais e humanos dos países periféricos, acentuando a desigualdade e minando as possibilidades do surgimento de estratégias políticas e econômicas autóctones.

A disseminação do capitalismo a nível planetário agudizou o choque entre as perspectivas dos contextos mundial e local. Este contraste tem provocado uma fricção intensa entre as duas esferas. A nível regional, a cultura de massa descaracteriza e subverte os valores morais. A nível mundial esta ambiguidade é sentida na insurgência de lutas de facções ou grupos organizados que buscam garantir modos de vida e moralidades diversos do padrão hegemônico. Na discussão que interessa a este trabalho, isso se manifesta no fato de que quanto mais buscamos encontrar a ética universal, mais nos deparamos com obstáculos morais aparentemente intransponíveis. Na medida em que grupos culturais, dentro de um mesmo contexto social, ou sociedades diferentes passam a aumentar seu contato, a diversidade moral e os interesses econômicos de cada um deles ficam evidenciados, criando verdadeiros abismos ao entendimento.

Não obstante, subsiste a necessidade de estabelecer padrões universais para orientar o comportamento. Os múltiplos choques que vimos presenciando mostram que é preciso estabelecer urgentemente as bases para uma nova discussão ética. Parâmetros que permitam o diálogo bilateral e simétrico entre moralidades das diferentes sociedades e possibilitem a convivência equilibrada entre os que detêm e aqueles submetidos ao poder, entre países centrais e periféricos.

Embora a urgência dessa discussão apresente graus de necessidade distintos para os dois grupos, ela parece indispensável tanto para aqueles que desejam minimizar confrontos considerados desnecessários, como ocorre nos países centrais, que acarretam instabilidade e perdas econômicas, quanto para os que necessitam dirimir conflitos insustentáveis, caso dos países periféricos, onde os embates são uma questão efetiva de sobrevivência. A crença despótica em certezas absolutas, que marca o desenvolvimento científico e a expansão capitalista, revela a parcialidade de suas premissas tornando-se cada vez mais insustentável.

Os árduos esforços realizados para encontrar padrões éticos para normatizar as relações a nível global, têm se revelado infrutíferos. Quando se tenta transpor as proposições morais que orientam o comportamento em um meio particular para um nível mais abrangente, os conflitos decorrentes revelam-se de difícil arbítrio. Mediados pela força de coação do poder hegemônico, as tentativas de suprimir os conflitos aumentam as diferenças e ampliam as desigualdades. A própria ideia de igualdade, semeada a esmo num solo ressecado pela injustiça, tornou-se mais uma ferramenta para maximizar o lucro e justificar a dominação. Como legitimar então a ética frente a tantas e tão numerosas expectativas? Como arbitrar os conflitos sem se valer da lei do mais forte? Que argumentos podem validar, diante da pujança do poder hegemônico, as bases mínimas para uma convivência harmônica, que limite abusos e arbitrariedades dos poderosos e diminua a vulnerabilidade dos despossuídos?

A inexistência deste ponto de partida para a construção da ética paralisa os esforços para transcender o impasse. Estamos com as mãos e a consciência atadas num nó que circunscreve nosso olhar aos mesmos limites que buscamos transcender. Por não termos encontrado ainda padrões mínimos para estabelecer uma ética universal da qual precisamos, buscamos amenizar os conflitos através de paliativos, como a ideia da tolerância nas relações e inter-relações. Ainda que a tolerância seja o mínimo óbvio para a produção do diálogo no embate entre as diferenças, ela é incapaz de suprimir as desigualdades. Se possibilita um aprofundamento do diálogo nos casos em que há simetria de poder entre os interlocutores, estanca a possibilidade real de uma troca, todas as vezes que a assimetria é uma evidência. A tolerância frente à assimetria leva o relativismo a níveis insuportáveis, transformando o diálogo em aceitação e subserviência.

DUAS REFERÊNCIAS CONCRETAS SOBRE ASSIMETRIA: "FINITUDE DOS RECURSOS NATURAIS" E "CORPORALIDADE, PRAZER E DOR".

Se o capitalismo apóia-se em teorias que prescrevem a necessidade do crescimento ilimitado, nossa recém adquirida consciência da finitude dos recursos naturais mobiliza-nos a tentar estabelecer limites em nome da preservação de nossa casa/planeta. O fato dos recursos naturais serem limitados e sua extinção atingir não só o modo de vida da civilização ocidental, mas todas as sociedades, parece um ponto de apoio sólido o suficiente para provocar a flexibilização de posições arbitrárias e inconsequentes onde as lideranças são evidentemente obtusas.

Embora seja inquestionável que os limites da sustentabilidade ecológica precisem ser mais discutidos e os rumos da tríade economia/ciência/tecnologia reavaliados, a determinação com que tornamos o discurso ecológico a piece de resistence de nossas tentativas de encontrar padrões éticos universais apenas reflete a angústia, a impotência e a incapacidade de transformar nossa visão de mundo frente a uma situação aparentemente marcada por imperativos absolutos.

Se o ser humano se caracteriza por ser um animal moral, a diversidade não deve ser suprimida e sim valorizada, já que expressa no plano simbólico a criatividade própria à evolução. E, se os valores que orientaram a construção das moralidades parecem não ter pontos de contato, devemos aprofundar nosso olhar. Para além do comportamento orientado por regras morais específicas em cada sociedade, devemos centrar nossos esforços na busca de padrões de relação entre seres humanos e culturas. Da dimensão das sociedades e da moral, então, precisamos trazer o foco da discussão para o ser humano. Para algumas características que sejam comuns à toda humanidade e que serviram para construir a cultura, as sociedades e as diversas moralidades: o prazer e a dor.

A busca de definições a partir da corporalidade não é uma estratégia nova. Em momentos diversos e com objetivos diferentes, outros pensadores já haviam percebido que prazer e dor são marcos da percepção sensorial que orientam a valoração social de fatos e comportamentos (Jeremy Bentham, Vilfredo Pareto, Charles Darwin, Karl Marx, Sigmund Freud, Michel Foucault...). Esses trabalhos mostram que prazer e dor condicionam o comportamento não apenas no plano das idéias, das noções morais que prescrevem a ação correta para um determinado sistema de valores mas, sobretudo, na prática concreta, nos corpos das pessoas, no saber e no fazer, na forma e no conteúdo, no pensar e no sentir.

A possibilidade de provocar o prazer ou infligir a dor a outros é a base das relações de poder. Justificado em seu próprio exercício, o poder legitima-se com a recompensa e o castigo que fundamentam a ideia de justiça. O medo, a força e a dor marcam as relações entre exploradores e explorados, legalizando o uso social do poder e condicionando o comportamento. O pacto social, seja ele qual for, tem relação com os parâmetros sensoriais.

O reconhecimento destes marcos é inteiramente generalizável. Enquanto espécie, seja qual for o critério adotado pelo meio cultural para defini-los, evitamos a dor e buscamos o prazer. Tememos e fugimos da morte, identificada com a dor, e desejamos a vida, que representa o prazer.

Tomar marcos sensoriais como parâmetros para a construção da ética pode ser interpretado como extremo reducionismo, já que o paradigma que orienta a visão de mundo ocidental está calcado na separação e hierarquização entre mente e corpo. Porém, se abandonarmos os preconceitos da perspectiva determinista que conforma a visão contemporânea, parecerá claro que, se no plano das idéias é impossível encontrar um ponto de contato para estabelecer uma ética que abarque a diversidade e produza o diálogo entre as moralidades, ela é palpável ao nível da corporeidade. A utilização de parâmetros sustentados na sensorialidade remete a discussão ética para o nível do indivíduo. Se os corpos humanos são culturalmente construídos, é nos tijolos e no cimento dessas construções que encontraremos o barro e o pó comuns a toda a humanidade. Porque é desta igualdade orgânica que se levantam as vozes da pluralidade. Assim, o que parece reducionismo, se visto por meio das lentes do paradigma cartesiano mecanicista, que determina uma abordagem fragmentada da realidade, poderá tornar-se a síntese quando enfocado em uma perspectiva sistêmica.

O reconhecimento do direito intrínseco à vida, sendo esta considerada uma experiência além da mera sobrevivência, permite construir padrões éticos para as relações nos quais as diferenças entre os seres humanos não signifiquem necessariamente assimetria de poder e desigualdade. Já que a qualidade de nossa consciência não nos permite dignificar o prazer de outro ser humano, tomando seu direito à vida como meta para uma convivência equânime e justa, ao menos lutemos para que o poder de infligir a dor seja considerado abominável. Se a violência é parte da psiquê humana, a dor dela decorrente não deve ser perpetrada se contrariar os interesses e desejos dos indivíduos que a ela se submetem. A experiência física da dor só se justifica quando ela é livremente consentida, quando senti-la significar uma escolha que reflita a autonomia e não sujeição decorrente da vulnerabilidade.

Acima das ideologias, essa divisão da humanidade em dois grupos de proporções desiguais, introduz concretamente as idéias de humanidade e subumanidade. A pequena parte, em termos quantitativos, que consome os recursos humanos e materiais, são os habitantes (humanos!) do planeta, aqueles a quem diz respeito a liberdade e a igualdade e para os quais há a possibilidade de experimentar a plenitude da existência. Aqueles para quem a vida pode ser prazer. A outra parte dos habitantes (humanos?) têm a existência caracterizada pela experiência do sofrimento. Para estes liberdade e igualdade juntam ao cotidiano o peso de uma vida escravizada à satisfação das necessidades mais básicas da existência. Essa imensa maioria de desvalidos em diferentes graus de perda de poder e subjugação de si mesmo, deve se doar ao holocausto que os vitimiza. Consumidos pela voracidade vampiresca de um sistema que se alimenta de seus corpos sugando a vitalidade de suas almas, e que se apropria das idéias de liberdade e igualdade para a dominação e manutenção de um crescimento insustentável.

A tecnologia impulsionada pela crença amplificou exponencialmente a assimetria de poder desde o pós-guerra tornando as relações totalmente desiguais. Saber e poder, associados, instituíram a Santíssima Trindade da nova crença imposta pela minoria dominante. O saber, a ciência, é o Pai. O poder, a tecnologia, é o Filho, corporificado nos artefatos tecnológicos que transformam, maravilham e atemorizam o quotidiano. E o Espírito Santo é a mão invisível que entre eles toca, com as garras do sistema econômico, os corpos e os espíritos. A eficácia santifica a crença nesta ideologia que conduz os rumos do saber e alimenta o poder da minoria dos habitantes do planeta. A associação entre a eficácia e o bem, e entre a ciência e a verdade, sustenta a exploração do sistema econômico e a opressão política.

A realidade material do grupo dominante não exemplifica o cotidiano real dos povos do mundo. Os desejos de uns, a minoria que domina, e as necessidades de outros, a maioria que se submete, estão em patamares de importância e valor diferentes. As conseqüências danosas, humanas e ambientais, da desenfreada expansão tecnológica são partilhadas em nome da igualdade. Os efeitos nefastos, políticos e econômicos, de um sistema que vulnerabiliza e vitimiza o cotidiano de milhões de pessoas há mais de meio século, são impostos em nome da liberdade. A apropriação espúria das idéias de liberdade e igualdade, transformam-nas em instrumentos ideológicos de dominação e exploração, legalizados por medidas políticas e sanções econômicas que aprisiona e submete.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A disseminação da crença nesta liberdade e nesta igualdade aprisiona em cavernas escuras a maioria condenada à cegueira. O mito de que estes valores são, acima de tudo, prerrogativas humanas, fruto de um profundo desejo pessoal, expresso na ideia da liberdade individual irrestrita, inviabiliza a possibilidade de qualquer tipo de pacto que não seja a lei do mais forte. Imposto como um fardo em nome da igualdade o etnocentrismo dos países centrais tornou-se grilhão.

Portanto, a circunscrição regional dos conflitos bélicos evidencia as diferenças entre as perspectivas morais dos variados contextos. A intolerância com a diversidade marca a fratura exposta no choque que caracteriza o confronto moral e o conflito ético. E a minoria encastelada na centralidade do exercício de seu poder, não usa apenas os corpos, ao transformar o suor alheio em água para regar seus desertos. Ela penhora o próprio planeta e a vida, tornando-os objetos de consumo e lucro, que podem ser explorados ou negligenciados impunemente. Esse uso predatório da Terra e de todos os seus frutos, incluindo os seres humanos, escraviza o ventre do futuro para deleite de uns poucos que não hesitam em usar a violência para manter seus privilégios.

Esse mundo desigual, no qual uns tem a possibilidade de sentir prazer enquanto a outros resta a probabilidade do sofrimento, configura o panorama que no nosso entendimento justifica uma bioética de intervenção. Uma proposta que, quebrando os paradigmas vigentes, reinaugure um utilitarismo humanitário orientado à busca da equidade entre os segmentos da sociedade. Capaz de dissolver esta divisão estrutural centro-periferia do mundo e assumir um consequencialismo solidário alicerçado na superação da desigualdade. Uma proposta que traga a igualdade para o cotidiano de seres humanos concretos dando à ideia de humanidade sua dimensão plena. É esse panorama desumano que nos propomos a discutir e são essas as questões que lançamos ao debate na abertura deste Sexto Congresso Mundial que tem como tema oficial exatamente: Bioética, poder e injustiça.


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Volnei Garrafa, professor titular da Universidade de Brasília, é presidente da Sociedade Brasileira de Bioética e do Sexto Congresso Mundial de Bioética.