BIOÉTICA,
PODER E INJUSTIÇA : POR UMA ÉTICA DE INTERVENÇÃO
Volnei Garrafa*
A partir dos anos 90, novas perspectivas teóricas críticas emergiram no contexto da bioética. Esses questionamentos trouxeram para a pauta dos debates mundiais aspectos até então consideradas apenas tangencialmente pelas abordagens tradicionais. Problemas persistentes constatados no quotidiano dos países periféricos - como a exclusão social e a concentração de poder; a globalização econômica internacional e a evasão dramática de divisas das nações mais pobres para os países centrais; a inacessibilidade dos grupos economicamente vulneráveis às conquistas do desenvolvimento científico e tecnológico; e a desigualdade de acesso das pessoas pobres aos bens de consumo básicos indispensáveis à sobrevivência humana com dignidade, entre outros aspectos, - passaram a fazer parte obrigatória da pauta dos pesquisadores que desejam trabalhar com uma bioética transformadora, comprometida e identificada com a realidade dos países chamados "em desenvolvimento" .
Tomando como ponto de partida a constatação desses indesejáveis indicadores de desequilíbrio social que deságuam em paradoxos éticos insustentáveis, é que a busca de respostas práticas e éticas, com base em referenciais teóricos mais apropriados, tornou-se prioritária para os países pobres do Hemisfério Sul. A partir da construção de um novo arcabouço crítico e epistemológico dialeticamente engajado às necessidades das maiorias populacionais excluídas do processo desenvolvimentista, os dilemas rotineiramente detectados pelos especialistas periféricos da bioética poderão passar a ser enfrentados com mais objetividade.
O propósito desta
mensagem, portanto, é procurar avançar no contexto internacional, a partir da
América Latina, com a proposta de discussão de uma bioética que tenha como
referência uma perspectiva periférica às abordagens bioéticas tradicionais,
principalmente o principialismo, de forte conotação anglo-saxônica. Este novo
enfoque teórico propõe uma aliança concreta com o lado historicamente mais
frágil da sociedade, incluindo a re-análise de diferentes dilemas, entre os
quais: autonomia versus justiça/equidade; benefícios individuais versus
benefícios coletivos; individualismo versus solidariedade; omissão versus
participação; mudanças superficiais e temporárias versus transformações
concretas e permanentes.
SISTEMATIZANDO CONCEITOS E JUSTIFICANDO A PROPOSTA
O processo de construção
do arcabouço teórico que sustenta esta proposta vêm sendo desenvolvido por
pesquisadores da Universidade de Brasília, Brasil e algumas das suas categorias
são apresentadas a seguir.
A bioética das
situações persistentes relaciona-se com a historicidade das condições que
teimosamente persistem entre as sociedades humanas desde a Antiguidade, como a
exclusão social, a discriminação das mulheres, o racismo, a iniquidade na
alocação e distribuição de recursos sanitários, o abandono de crianças e idosos,
o aborto, a eutanásia, entre outras. Já a bioética das situações emergentes diz
respeito às questões decorrentes ao acelerado desenvolvimento científico e
tecnológico que surgiram (emergiram) nos últimos cinqüenta anos, entra as quais
encontram-se as novas técnicas de reprodução (incluindo a clonagem reprodutiva
e a terapêutica), o Projeto Genoma Humano e os avanços no campo da engenharia
genética, os transplantes de órgãos e tecidos humanos, etc.
Outras expressões
utilizadas são países centrais e países periféricos. O "central", no
caso, significa os países do mundo onde os problemas básicos com saúde,
educação, alimentação, moradia e transporte já estão resolvidos e/ou bem
encaminhados quanto a sua solução. Os "periféricos", por outro lado,
são aqueles que os organismos internacionais costumam chamar de "em
desenvolvimento", onde a maioria da população continua lutando pela
obtenção de condições mínimas de sobrevivência e dignidade e, principalmente,
onde a concentração de poder e renda encontram-se nas mãos de um número cada
vez menos representativo de pessoas. O fenômeno da globalização econômica vêm
agravando as diferenças entre ricos e pobres em todo planeta, embrutecendo
ainda mais as relações.
Os estudiosos da
bioética que trabalham em diferentes contextos sociais, com
privilegiados/incluídos e desprivilegiados/excluídos, acabam por ter que
enfrentar conflitos e problemas de origens, dimensões e complexidade
completamente diferentes. As interpretações dos fatos e as respostas a eles,
portanto, não podem ser iguais. Deve-se ter em mente que, entre outras razões,
a bioética surgiu para reforçar o lado mais frágil de qualquer inter-relação
historicamente determinada. Frente a isto é fundamental que a bioética dos
países periféricos, e os da América Latina particularmente, passe a não aceitar
mais o crescente processo de despolitização dos conflitos morais. O que está
acontecendo, muitas vezes, é a utilização de justificativas bioéticas como
"instrumentos", como "ferramentas" metodológicas, que
acabam servindo de modo neutral apenas para a leitura e interpretação
(acríticas) dos conflitos, por mais dramáticos que sejam. Dessa maneira, é
atenuada (e até mesmo anulada, apagada...) a gravidade das diferentes
situações, principalmente aquelas coletivas e que, portanto, acarretam as mais
profundas distorções sociais.
Para recordar a
necessidade da bioética dedicar-se com mais vigor ao tema das desigualdades
sociais, basta recordar que existem lugares como Serra Leoa, Malawi ou Burkina
Fasso, na África, onde a expectativa média de vida ao nascer mal chega aos 40
anos de idade, enquanto no Japão, Estados Unidos e em alguns países europeus já
passa dos 80 anos. Enquanto em Uganda o investimento anual per capita em saúde
alcança alguns poucos dólares por ano e na América Latina oscila entre os 200 e
400 dólares, na maioria dos países da Europa Ocidental ultrapassa os 2 mil
dólares e nos Estados Unidos da América do Norte já se aproxima dos 3 mil.
Dentro da mesma
linha de exemplos, em 1998 foram gastos em pesquisas com medicamentos contra o
HIV/Aids, cinqüenta vezes mais recursos do que no combate à malária, quando se
sabe que ambas doenças vitimaram, naquele ano, um número semelhante e
aproximado de 2 milhões de pessoas em todo mundo. A diferença para essa absurda
iniquidade no investimento de recursos está no fato da Aids ter logrado
visibilidade pública internacional pelos enormes danos e prejuízos causados
indistintamente a países ricos e pobres. Já a malária é doença
caracteristicamente "terceiro mundista", atacando quase que
exclusivamente pobres. Por isso, não existe interesse econômico dos grandes
laboratórios privados e públicos dos países centrais em investir em caras
imunizações e medicamentos para quem não possa pagar por eles. O que define as
prioridades não são as necessidades detectadas na realidade concreta: é o
mercado. E o mercado tem se mostrado a cada ano mais perverso, com regras cada
dia mais protecionistas para os países ricos e, portanto, mais insensível .
As disparidades,
desigualdades e a inacessibilidade da maioria da população mundial a uma
existência digna revelam absoluta ausência de ética. Diante das pandemias e
mortandades verificadas principalmente na África e mostradas pela televisão ao
vivo e a cores para todo mundo - quando o "desenvolvimento"
presumivelmente já havia aportado em todos os cinco continentes - as justas
preocupações animalistas de Peter Singer soam anacrônicas e fora de lugar. E os
"estranhos morais" de H. T. Engelhardt Jr. correm o risco de virem a
ser re-denominados de "impossibilitados morais" ou "excluídos
morais" já que o termo "estranhos" é demasiado suave (ou
demasiado frágil...) para espelhar as absurdas desigualdades entre ricos e
pobres, entre incluídos e excluídos, entre "centrais" e
"periféricos".
Neste sentido, vale resgatar que o significado de equidade não é o mesmo de igualdade. Igualdade é a conseqüência desejada da equidade, sendo esta apenas o ponto de partida para aquela. Ou seja, é o reconhecimento das diferenças e a supressão das necessidades diversas dos sujeitos sociais que possibilita alcançar a igualdade. A igualdade, tal como proposta pela revolução francesa e incorporada às estruturas simbólicas do Ocidente há mais de 200 anos, não pode continuar sendo o ponto de partida ideológico para a construção de relações éticas. Vista de forma exclusivamente horizontalizada, que tende a anular as diferenças, ela ignora as desigualdades concretas e aviltantes que marcam hoje a vida da maior parte das populações do mundo. A igualdade é o ponto de chegada da justiça social, referencial dos direitos humanos mais elementares, onde o objetivo futuro é o reconhecimento da cidadania .
Neste sentido, vale resgatar que o significado de equidade não é o mesmo de igualdade. Igualdade é a conseqüência desejada da equidade, sendo esta apenas o ponto de partida para aquela. Ou seja, é o reconhecimento das diferenças e a supressão das necessidades diversas dos sujeitos sociais que possibilita alcançar a igualdade. A igualdade, tal como proposta pela revolução francesa e incorporada às estruturas simbólicas do Ocidente há mais de 200 anos, não pode continuar sendo o ponto de partida ideológico para a construção de relações éticas. Vista de forma exclusivamente horizontalizada, que tende a anular as diferenças, ela ignora as desigualdades concretas e aviltantes que marcam hoje a vida da maior parte das populações do mundo. A igualdade é o ponto de chegada da justiça social, referencial dos direitos humanos mais elementares, onde o objetivo futuro é o reconhecimento da cidadania .
A busca da
equidade, o reconhecimento de necessidades diversas em sujeitos também
diferentes para atingir objetivos iguais, é um dos caminhos da ética prática
face à necessidade de expandir o acesso aos direitos humanos universais. A
garantia do direito a uma vida digna, representado nessa discussão pela
possibilidade de acesso à saúde e demais bens indispensáveis à sobrevivência e
à qualidade de vida no mundo pós-moderno.
Diante de todas
estas questões éticas propomos para os países periféricos um novo enfoque
bioético, baseado em práticas intervencionistas, diretas e duras, que
instrumentalizem a busca da diminuição das iniquidades. Em reunião da
Organização Mundial da Saúde realizada em Genebra em 2001, o governo brasileiro
deu um exemplo concreto neste sentido ao propor à assembléia - e ver sua
proposta aprovada - que em casos de riscos para a saúde pública o acesso dos
países aos medicamentos passasse a ser considerado uma questão de direitos
humanos, princípio que , posteriormente, foi referendado após duros debates em
reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) realizada em Doha, Quatar
(novembro de 2001).
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Representativo
número de filósofos identifica as idéias de ética e moral como sinônimas. Ambas
dizem respeito ao padrão ideal de comportamento para a otimização da vida
social. Embora não seja o objetivo desta apresentação analisar as raízes
históricas da identificação destas duas classificações, consideramos necessário
estabelecer uma distinção entre elas, partindo da maneira como valoramos esses
conceitos.
Nas
representações coletivas que conformam o entendimento e a utilização destas
categorias, percebemos que a principal diferença entre elas reside no fato de
se atribuir à primeira (ética) um caráter abrangente, que lhe confere a
qualidade de fenômeno universal e generalizável e à segunda (moral) as
características de fenômeno cultural específico, relacionado aos valores de
cada grupo social. Reconhecemos a moral como plural, enquanto creditamos à
ética as características de unidade e transcendência. Os valores que orientam a
construção da ideia de ética, segundo essa crença, implicam em seu reconhecimento
e aplicação por grupos sociais com parâmetros morais diversos. Assim, a
existência da discussão ética implicaria em transcender partidarismos e
interesses de grupos. Se no nível simbólico as idéias de ética e moral parecem
mais ou menos claras, na prática, o que se tem constatado, é a enorme
dificuldade de encontrar esses pontos de intersecção.
A compreensão da
diversidade moral das sociedades humanas só começou a ser entendida nas últimas
décadas. Antes disso, as diferenças morais entre elas ou entre os grupos em um
mesmo contexto eram sistematicamente silenciadas. Sociedades, culturas,
ideologias e moralidades foram classificadas por uma perspectiva estritamente
materialista, que considera apenas o desenvolvimento tecnológico e entendidas
como patamares de um processo evolutivo monolítico. Apesar dessa visão
niveladora, as diferenças morais de cada uma das sociedades subsistiram como
pano de fundo ao avanço do capitalismo.
Calcada no
desenvolvimento científico e tecnológico, a lógica capitalista transformou as
diversas sociedades em meros mercados e as moralidades tornaram-se obstáculos a
seu projeto de crescimento ilimitado. As propostas de "double
standard" para testagem de novos medicamentos em países ricos e pobres e
que vêm originando tantas discussões e protestos internacionais nos últimos
anos, são prova disso, uma vez que a essência da proposta incide na
flexibilização dos parâmetros éticos para as pesquisas com seres humanos. E a
ética não é quantitativa. Não se pode ser, por exemplo, 70% ético. A ética é ou
não é.
Por outro lado, a
distribuição da riqueza e o consumo de recursos são inversamente proporcionais
à divisão numérica da população. Mesmo sendo numericamente a minoria, as
sociedades dominantes buscaram anular ideológica e moralmente a legitimidade
das demais, na tentativa de impor um padrão único. Na prática, as diferentes
moralidades foram subjugadas no processo de expansão e dominação econômica. A
produção de alimentos no mundo atual, por exemplo, suplanta as necessidades
nutricionais dos 6 bilhões de habitantes do planeta. No entanto, por problemas
distributivos, é incontável o contingente de pessoas que ainda morrem de fome
ou de suas conseqüências.
Se o conhecimento
mais extenso das diferenças morais entre as sociedades do mundo ressaltou a
ideia de pluralidade, ao mesmo tempo reforçou a noção de interdependência e
totalidade. As tecnologias desenvolvidas ampliaram as possibilidades de
comunicação e troca de informações, criando uma cultura de massa pronta para
atender as exigências sempre crescentes do consumo. A crença da lógica
capitalista de que os fins justificam os meios legitima a apropriação de
recursos naturais e humanos dos países periféricos, acentuando a desigualdade e
minando as possibilidades do surgimento de estratégias políticas e econômicas
autóctones.
A disseminação do
capitalismo a nível planetário agudizou o choque entre as perspectivas dos
contextos mundial e local. Este contraste tem provocado uma fricção intensa
entre as duas esferas. A nível regional, a cultura de massa descaracteriza e
subverte os valores morais. A nível mundial esta ambiguidade é sentida na
insurgência de lutas de facções ou grupos organizados que buscam garantir modos
de vida e moralidades diversos do padrão hegemônico. Na discussão que interessa
a este trabalho, isso se manifesta no fato de que quanto mais buscamos
encontrar a ética universal, mais nos deparamos com obstáculos morais
aparentemente intransponíveis. Na medida em que grupos culturais, dentro de um
mesmo contexto social, ou sociedades diferentes passam a aumentar seu contato,
a diversidade moral e os interesses econômicos de cada um deles ficam
evidenciados, criando verdadeiros abismos ao entendimento.
Não obstante,
subsiste a necessidade de estabelecer padrões universais para orientar o
comportamento. Os múltiplos choques que vimos presenciando mostram que é
preciso estabelecer urgentemente as bases para uma nova discussão ética.
Parâmetros que permitam o diálogo bilateral e simétrico entre moralidades das
diferentes sociedades e possibilitem a convivência equilibrada entre os que
detêm e aqueles submetidos ao poder, entre países centrais e periféricos.
Embora a urgência
dessa discussão apresente graus de necessidade distintos para os dois grupos,
ela parece indispensável tanto para aqueles que desejam minimizar confrontos
considerados desnecessários, como ocorre nos países centrais, que acarretam
instabilidade e perdas econômicas, quanto para os que necessitam dirimir
conflitos insustentáveis, caso dos países periféricos, onde os embates são uma
questão efetiva de sobrevivência. A crença despótica em certezas absolutas, que
marca o desenvolvimento científico e a expansão capitalista, revela a
parcialidade de suas premissas tornando-se cada vez mais insustentável.
Os árduos
esforços realizados para encontrar padrões éticos para normatizar as relações a
nível global, têm se revelado infrutíferos. Quando se tenta transpor as
proposições morais que orientam o comportamento em um meio particular para um
nível mais abrangente, os conflitos decorrentes revelam-se de difícil arbítrio.
Mediados pela força de coação do poder hegemônico, as tentativas de suprimir os
conflitos aumentam as diferenças e ampliam as desigualdades. A própria ideia de
igualdade, semeada a esmo num solo ressecado pela injustiça, tornou-se mais uma
ferramenta para maximizar o lucro e justificar a dominação. Como legitimar
então a ética frente a tantas e tão numerosas expectativas? Como arbitrar os
conflitos sem se valer da lei do mais forte? Que argumentos podem validar, diante
da pujança do poder hegemônico, as bases mínimas para uma convivência
harmônica, que limite abusos e arbitrariedades dos poderosos e diminua a
vulnerabilidade dos despossuídos?
A inexistência
deste ponto de partida para a construção da ética paralisa os esforços para
transcender o impasse. Estamos com as mãos e a consciência atadas num nó que
circunscreve nosso olhar aos mesmos limites que buscamos transcender. Por não
termos encontrado ainda padrões mínimos para estabelecer uma ética universal da
qual precisamos, buscamos amenizar os conflitos através de paliativos, como a
ideia da tolerância nas relações e inter-relações. Ainda que a tolerância seja
o mínimo óbvio para a produção do diálogo no embate entre as diferenças, ela é
incapaz de suprimir as desigualdades. Se possibilita um aprofundamento do
diálogo nos casos em que há simetria de poder entre os interlocutores, estanca
a possibilidade real de uma troca, todas as vezes que a assimetria é uma
evidência. A tolerância frente à assimetria leva o relativismo a níveis
insuportáveis, transformando o diálogo em aceitação e subserviência.
DUAS REFERÊNCIAS CONCRETAS SOBRE ASSIMETRIA: "FINITUDE DOS RECURSOS NATURAIS" E "CORPORALIDADE, PRAZER E DOR".
Se o capitalismo
apóia-se em teorias que prescrevem a necessidade do crescimento ilimitado,
nossa recém adquirida consciência da finitude dos recursos naturais
mobiliza-nos a tentar estabelecer limites em nome da preservação de nossa
casa/planeta. O fato dos recursos naturais serem limitados e sua extinção atingir
não só o modo de vida da civilização ocidental, mas todas as sociedades, parece
um ponto de apoio sólido o suficiente para provocar a flexibilização de
posições arbitrárias e inconsequentes onde as lideranças são evidentemente
obtusas.
Embora seja inquestionável
que os limites da sustentabilidade ecológica precisem ser mais discutidos e os
rumos da tríade economia/ciência/tecnologia reavaliados, a determinação com que
tornamos o discurso ecológico a piece de resistence de nossas tentativas de
encontrar padrões éticos universais apenas reflete a angústia, a impotência e a
incapacidade de transformar nossa visão de mundo frente a uma situação
aparentemente marcada por imperativos absolutos.
Se o ser humano
se caracteriza por ser um animal moral, a diversidade não deve ser suprimida e
sim valorizada, já que expressa no plano simbólico a criatividade própria à
evolução. E, se os valores que orientaram a construção das moralidades parecem
não ter pontos de contato, devemos aprofundar nosso olhar. Para além do
comportamento orientado por regras morais específicas em cada sociedade,
devemos centrar nossos esforços na busca de padrões de relação entre seres
humanos e culturas. Da dimensão das sociedades e da moral, então, precisamos
trazer o foco da discussão para o ser humano. Para algumas características que
sejam comuns à toda humanidade e que serviram para construir a cultura, as
sociedades e as diversas moralidades: o prazer e a dor.
A busca de
definições a partir da corporalidade não é uma estratégia nova. Em momentos
diversos e com objetivos diferentes, outros pensadores já haviam percebido que
prazer e dor são marcos da percepção sensorial que orientam a valoração social
de fatos e comportamentos (Jeremy Bentham, Vilfredo Pareto, Charles Darwin,
Karl Marx, Sigmund Freud, Michel Foucault...). Esses trabalhos mostram que
prazer e dor condicionam o comportamento não apenas no plano das idéias, das
noções morais que prescrevem a ação correta para um determinado sistema de
valores mas, sobretudo, na prática concreta, nos corpos das pessoas, no saber e
no fazer, na forma e no conteúdo, no pensar e no sentir.
A possibilidade
de provocar o prazer ou infligir a dor a outros é a base das relações de poder.
Justificado em seu próprio exercício, o poder legitima-se com a recompensa e o
castigo que fundamentam a ideia de justiça. O medo, a força e a dor marcam as
relações entre exploradores e explorados, legalizando o uso social do poder e
condicionando o comportamento. O pacto social, seja ele qual for, tem relação
com os parâmetros sensoriais.
O reconhecimento
destes marcos é inteiramente generalizável. Enquanto espécie, seja qual for o
critério adotado pelo meio cultural para defini-los, evitamos a dor e buscamos
o prazer. Tememos e fugimos da morte, identificada com a dor, e desejamos a
vida, que representa o prazer.
Tomar marcos
sensoriais como parâmetros para a construção da ética pode ser interpretado
como extremo reducionismo, já que o paradigma que orienta a visão de mundo
ocidental está calcado na separação e hierarquização entre mente e corpo.
Porém, se abandonarmos os preconceitos da perspectiva determinista que conforma
a visão contemporânea, parecerá claro que, se no plano das idéias é impossível
encontrar um ponto de contato para estabelecer uma ética que abarque a
diversidade e produza o diálogo entre as moralidades, ela é palpável ao nível
da corporeidade. A utilização de parâmetros sustentados na sensorialidade
remete a discussão ética para o nível do indivíduo. Se os corpos humanos são
culturalmente construídos, é nos tijolos e no cimento dessas construções que
encontraremos o barro e o pó comuns a toda a humanidade. Porque é desta
igualdade orgânica que se levantam as vozes da pluralidade. Assim, o que parece
reducionismo, se visto por meio das lentes do paradigma cartesiano mecanicista,
que determina uma abordagem fragmentada da realidade, poderá tornar-se a
síntese quando enfocado em uma perspectiva sistêmica.
O reconhecimento
do direito intrínseco à vida, sendo esta considerada uma experiência além da mera
sobrevivência, permite construir padrões éticos para as relações nos quais as
diferenças entre os seres humanos não signifiquem necessariamente assimetria de
poder e desigualdade. Já que a qualidade de nossa consciência não nos permite
dignificar o prazer de outro ser humano, tomando seu direito à vida como meta
para uma convivência equânime e justa, ao menos lutemos para que o poder de
infligir a dor seja considerado abominável. Se a violência é parte da psiquê
humana, a dor dela decorrente não deve ser perpetrada se contrariar os
interesses e desejos dos indivíduos que a ela se submetem. A experiência física
da dor só se justifica quando ela é livremente consentida, quando senti-la
significar uma escolha que reflita a autonomia e não sujeição decorrente da
vulnerabilidade.
Acima das
ideologias, essa divisão da humanidade em dois grupos de proporções desiguais,
introduz concretamente as idéias de humanidade e subumanidade. A pequena parte,
em termos quantitativos, que consome os recursos humanos e materiais, são os
habitantes (humanos!) do planeta, aqueles a quem diz respeito a liberdade e a
igualdade e para os quais há a possibilidade de experimentar a plenitude da
existência. Aqueles para quem a vida pode ser prazer. A outra parte dos
habitantes (humanos?) têm a existência caracterizada pela experiência do
sofrimento. Para estes liberdade e igualdade juntam ao cotidiano o peso de uma
vida escravizada à satisfação das necessidades mais básicas da existência. Essa
imensa maioria de desvalidos em diferentes graus de perda de poder e subjugação
de si mesmo, deve se doar ao holocausto que os vitimiza. Consumidos pela
voracidade vampiresca de um sistema que se alimenta de seus corpos sugando a
vitalidade de suas almas, e que se apropria das idéias de liberdade e igualdade
para a dominação e manutenção de um crescimento insustentável.
A tecnologia
impulsionada pela crença amplificou exponencialmente a assimetria de poder
desde o pós-guerra tornando as relações totalmente desiguais. Saber e poder,
associados, instituíram a Santíssima Trindade da nova crença imposta pela
minoria dominante. O saber, a ciência, é o Pai. O poder, a tecnologia, é o
Filho, corporificado nos artefatos tecnológicos que transformam, maravilham e
atemorizam o quotidiano. E o Espírito Santo é a mão invisível que entre eles
toca, com as garras do sistema econômico, os corpos e os espíritos. A eficácia
santifica a crença nesta ideologia que conduz os rumos do saber e alimenta o
poder da minoria dos habitantes do planeta. A associação entre a eficácia e o
bem, e entre a ciência e a verdade, sustenta a exploração do sistema econômico
e a opressão política.
A realidade
material do grupo dominante não exemplifica o cotidiano real dos povos do
mundo. Os desejos de uns, a minoria que domina, e as necessidades de outros, a
maioria que se submete, estão em patamares de importância e valor diferentes.
As conseqüências danosas, humanas e ambientais, da desenfreada expansão
tecnológica são partilhadas em nome da igualdade. Os efeitos nefastos,
políticos e econômicos, de um sistema que vulnerabiliza e vitimiza o cotidiano
de milhões de pessoas há mais de meio século, são impostos em nome da
liberdade. A apropriação espúria das idéias de liberdade e igualdade,
transformam-nas em instrumentos ideológicos de dominação e exploração,
legalizados por medidas políticas e sanções econômicas que aprisiona e submete.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A disseminação da
crença nesta liberdade e nesta igualdade aprisiona em cavernas escuras a
maioria condenada à cegueira. O mito de que estes valores são, acima de tudo,
prerrogativas humanas, fruto de um profundo desejo pessoal, expresso na ideia
da liberdade individual irrestrita, inviabiliza a possibilidade de qualquer
tipo de pacto que não seja a lei do mais forte. Imposto como um fardo em nome
da igualdade o etnocentrismo dos países centrais tornou-se grilhão.
Portanto, a
circunscrição regional dos conflitos bélicos evidencia as diferenças entre as
perspectivas morais dos variados contextos. A intolerância com a diversidade
marca a fratura exposta no choque que caracteriza o confronto moral e o
conflito ético. E a minoria encastelada na centralidade do exercício de seu
poder, não usa apenas os corpos, ao transformar o suor alheio em água para
regar seus desertos. Ela penhora o próprio planeta e a vida, tornando-os
objetos de consumo e lucro, que podem ser explorados ou negligenciados
impunemente. Esse uso predatório da Terra e de todos os seus frutos, incluindo
os seres humanos, escraviza o ventre do futuro para deleite de uns poucos que
não hesitam em usar a violência para manter seus privilégios.
Esse mundo
desigual, no qual uns tem a possibilidade de sentir prazer enquanto a outros
resta a probabilidade do sofrimento, configura o panorama que no nosso
entendimento justifica uma bioética de intervenção. Uma proposta que, quebrando
os paradigmas vigentes, reinaugure um utilitarismo humanitário orientado à
busca da equidade entre os segmentos da sociedade. Capaz de dissolver esta
divisão estrutural centro-periferia do mundo e assumir um consequencialismo
solidário alicerçado na superação da desigualdade. Uma proposta que traga a
igualdade para o cotidiano de seres humanos concretos dando à ideia de
humanidade sua dimensão plena. É esse panorama desumano que nos propomos a
discutir e são essas as questões que lançamos ao debate na abertura deste Sexto
Congresso Mundial que tem como tema oficial exatamente: Bioética, poder e
injustiça.
________________
Volnei Garrafa, professor
titular da Universidade de Brasília, é presidente da Sociedade Brasileira de Bioética
e do Sexto Congresso Mundial de Bioética.