sábado, 20 de setembro de 2008

Tablóide OP - 144


Um apelo à solidariedade continental com o
Povo de Deus em movimento

INTRODUÇÃO

De 1º a 4 de agosto de 2008 teve lugar na Casa do Migrante, que atende a Família Dominicana do México e outros países na Cidade Juarez, Chihuahua, México, o Primeiro Seminário Continental de Justiça e Paz sobre os problemas que afetam nossas irmãs e irmãos migrantes. Participaram 42 Irmãs Dominicanas de 16 Congregações, 20 Frades de 6 Províncias do Continente e 6 Leigos Dominicanos, todos eles pertencentes a 13 países: Argentina, Brasil, Colômbia, Equador, Costa Rica, Chile, Honduras, Itália, Estados Unidos, México, Peru, Porto Rico e República Dominicana.
Os objetivos do Seminário foram, em primeiro lugar, o de estreitar laços de conhecimento, fraternidade-sororidade e solidariedade entre os Dominicanos e Dominicanas do Norte, do Centro, Caribe e Sul do Continente, que estão trabalhando na prioridade da promoção da Justiça e Paz da Ordem, especialmente no tema da pastoral e o compromisso social com as pessoas migrantes e deslocadas; realizar uma análise da conjuntura econômica, social, política e eclesial no Continente, a propósito do tema da migração, e elaborar um plano estratégico de ação, a curto, médio e longo prazo, para que os(as) Dominicanos(as) do Norte, do Centro, do Caribe e do Sul do Continente Americano se solidarizem com as pessoas que se vêem obrigadas a migrar por razões de pobreza, violência interna e sobrevivência pessoal e familiar. Foi por isso que o Seminário se desenvolveu seguindo a metodologia pastoral do Ver, Julgar, Agir, Celebrar da Igreja da América Latina e o Caribe.
Para os casos da América Latina e o Caribe, este Seminário Continental significa em certo modo a culminação de uma série de Seminários sobre o tema, a partir do ano 2004. Entre os dias 26 e 29 de maio desse ano, com efeito, a Comissão de Justiça e Paz da Família Dominicana do Cone Sul realizou um Seminário-Oficina no Paraguai, com o acompanhamento da Promotoria Regional de Justiça e Paz de Codalc, sobre o tema “Terra, agronegócios e Migrações”. De 24 a 27 de novembro de 2005 as Promotorias Regionais de Justiça e Paz de Cidalc e Codal convocaram e também realizaram em El Salvador outro Seminário-Oficina sobre o tema “Trabalho e Migração”, com a ativa colaboração da Família Dominicana na Zona Mesoamericana (México e América Central). E de 15 a 18 de junho de 2006 aconteceu em Quito, Equador, outro Seminário sobre o tema das migrações, suas causas e efeitos, com a participação de Irmãs, Irmãos, Leigos Dominicanos, ou associados aos trabalhos de Justiça e Paz da Família Dominicana na Zona Bolivariana Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia. Isso explica que este ano os organizadores hajam querido centrar sua atenção na migração para o México, como país de origem, trânsito e destino das migrações do Sul, sobretudo da América Central, e desde logo para os Estados Unidos da América, como principal país de destino. A isso também se
deve que neste Seminário se haja colocado tanto interesse na participação das Irmãs e Irmãos desse país, os que por sua vez colocaram já há muitos anos esse tema como prioritário da Comissão de Justiça e Paz da Família Dominicana na América do Norte, e realizem ações muito importantes para responder a ele nos lugares onde trabalham.
Depois de haver trabalhado em grupos mistos de irmãs, frades e leigos, representativos dos distintos países participantes no Seminário, e em plenários, e depois de haver compartilhado importantes experiências de trabalho pastoral da Família Dominicana com migrantes no Norte, o Centro, Caribe e Sul do Continente, assim como depois de haver escutado e dialogado com especialistas em ciências humanas, teologia e pastoral sobre o tema, decidiu-se emitir a seguinte declaração, com o propósito de fazê-la chegar a toda a Ordem, à sociedade, à opinião pública e às instâncias de decisão política e eclesial, nacionais e internacionais.

1.- A realidade histórica da migração

Os processos migratórios e suas causas

Durante o século XX no Continente (América Latina e Caribe), em função dos distintos modelos de desenvolvimento econômico, as migrações mudaram radicalmente. A partir do século XIX e até a quarta década do século XX as migrações internacionais são fundamentalmente fluxos provenientes da Europa para a América Latina e o Caribe. Em meados do século XX surgem as grandes migrações do campo para a cidade e a conformação de um mercado laboral crescente, como resposta aos processos de modernização e industrialização, agravados pela ausência de uma reforma agrária efetiva e a falta de atenção às necessidades do campesinado. Nos anos sessenta e setenta adquirem notoriedade as migrações internacionais da América do Sul, freqüentemente motivadas pelas ditaduras militares em vários países. Porém é com o estabelecimento do modelo neoliberal na região nos anos oitenta, que se aprofunda e amplia severamente a pobreza de milhões de pessoas, que as migrações internacionais crescem de maneira significativa nos Estados Unidos, na Europa e em outros lugares. Com o neoliberalismo se impõe o desmantelamento dos projetos de desenvolvimento econômico nacional, a aplicação dos programas de ajuste macroeconômico e sua seqüela de privatizações, aberturas precipitadas de mercados nacionais a práticas de comércio internacional injustas, sancionadas por acordos de livre comércio, redução do investimento público em áreas vitais (especialmente social), fechamento de empresas pequenas e médias e crescente desemprego. Exemplo deste sistema é o Haiti, onde 80 por cento de sua população vive com menos de dois dólares por dia, e se localiza no posto 150 de 177 no Índice de Desenvolvimento Humano que é medido pelas Nações Unidas, o que o converte ao mesmo tempo em um país produtor de migrantes e receptor de repatriados e expulsos, que são vítimas de todo tipo de abusos e vicissitudes no território dominicano. Sem esquecer situações de violência causadas pela pobreza e narcotráfico em países como a Bolívia, ou por estes fatores, somados às guerrilha e à repressão em países como a Colômbia, que ocasionaram e seguem ocasionando o deslocamento externo e interno de milhões de pessoas, na busca de segurança e de uma vida melhor. As crescentes migrações internas e internacionais, assim, convertem-se num distintivo de nossa época, e diante das quais não podemos permanecer indiferentes.

As remessas

Para 2007 mais de 30 milhões de migrantes latino-americanos enviaram 68 bilhões de dólares a seus países de origem. Deles, 24 milhões 254 mil ao México, 24 milhões 250 mil a América do Sul, 11 milhões 031 mil a América Central e 8 milhões e 370 mil ao Caribe. Este crescimento das remessas é um reflexo do crescimento explosivo das migrações internacionais. Outro reflexo, que não podemos deixar de mencionar com crescente preocupação, é a destruição do tecido social e produtivo que obriga milhões de latino-americanos a procurar no exterior, ou no interior de suas próprias fronteiras, o que se lhes nega em seus próprios países: serenidade, paz, condições de trabalho, uma vida digna e emprego. Isso, entretanto, em sua emigração ao Norte a maioria dos trabalhadores não puderam alcançar o “sonho americano” que esperavam e como resultado de sua migração seus povoados e casas de campo ficaram, entretanto semidesertos, suas famílias cada vez mais divididas e seus anciãos abandonados.
A partir do final dos anos noventa do século XX se inicia um crescente interesse pelas remessas nos governos dos países receptores e em alguns organismos internacionais. O crescimento das remessas se transformou num falsa expectativa econômica: animar a migração internacional para acrescentar o volume das remessas por receber nos países de origem dos migrantes. Esse enfoque desconhece que as remessas são recursos privados, são salários transnacionais e se destinam da mesma forma no que fazem os salários gerados no interior do país: reprodução da força do trabalho familiar e solução econômica limitada às necessidades mais elementares de suas famílias e suas comunidades. Sem dúvida, os migrantes querem ajudar os seus países com investimentos ao alcance de suas possibilidades, mas não lhes toca assumir a responsabilidade do desenvolvimento que compete aos Estados, nem aos de origem nem aos que os empregam. Nos últimos quinze anos as economias latino-americanas se tornaram adictas às remessas. Sua adição tornou-as altamente vulneráveis à variabilidade desses ingressos.
O sofrimento que enfrenta a migração
Uma tendência importante a ter em conta se refere às mudanças no padrão migratório que têm efeitos no presente e futuro dos países de origem de maneira preferente, sobretudo nos casos das migrações para o exterior. Pouco a pouco as famílias chegaram a compreender que a migração não era temporal, mas permanente, e hoje as migrações são de toda a família, assim seja de maneira escalonada, porém tendente a ser migração definitiva. Isso provoca problemas de despovoamento nos países, o qual caracteriza muitas comunidades e inclusive áreas inteiras. No futuro este despovoamento tornará inviável qualquer idéia de desenvolvimento regional ou nacional por falta de população. Nos países de trânsito, as alterações no padrão migratório também afetam, sobretudo quando neles privam por decisão própria ou por encargo políticas migratórias contrárias à mobilidade humana, que afetam de maneira especial as mulheres, os meninos e as meninas: auge de redes de traficantes e tráfico de pessoas, corrupção, impunidade, inexistência do devido processo, incentivo à discriminação, abuso sexual de mulheres, adolescentes, meninas e meninos, mancomunação de agentes corruptos e delinqüentes comuns, deslocamentos forçados internos, encaixe de redes de traficantes de drogas e pessoas. Em tudo isso as autoridades governamentais responsáveis pela proteção dos migrantes estiveram pelo menos ausentes, ou foram cúmplices de sua exploração, enriquecendo-se às costas deles. Ao reunir-nos na Cidade Juarez, não podemos deixar de mencionar as violações sexuais, desaparecimentos e homicídios que padeceram milhares de mulheres migrantes, que vieram para trabalhar nas maquiladoras (empresas que importam peças e componentes de suas matrizes estrangeiras para que os produtos sejam manufaturados, n. d. t.) ou viajar ao Norte. Os abusos que elas sofrem continuam até hoje na impunidade. Numa palavra, existe um preocupante crescimento do estado de indefesabilidade dos e das migrantes. Nos países de destino os migrantes encontram extrema discriminação e exploração. Ainda que sua mão de obra seja bem-vinda, pelo pouco que lhes pagam sua permanência e seus direitos civis e humanos lhes são negados. A partir de 11 de setembro de 2001 as iniciativas de lei nos Estados Unidos subverteram sua segurança no trabalho e sua liberdade de movimento, e restringiram sua oportunidade para legalizar sua estadia, comprometendo com isso seus esforços para assegurar a unidade de suas famílias. Além do mais são caluniados como ameaças para a segurança e estabilidade nacionais, e forçados a viver com medo nos lugares mais escuros e marginalizados da sociedade. A mudança no padrão migratório terá, assim, conseqüências diversas nos países de origem, trânsito e destino, que não foram positivamente previstas pelos governos envolvidos. O presente já é assim muito preocupante e o futuro de todos, neste contexto, é incerto.
Hoje que a recessão econômica nos Estados Unidos e na Europa está levando ao desemprego centenas de milhares de imigrantes, torna-se evidente o inegável: deportações crescentes de migrantes e imigrados de vários países da América Latina e o Caribe, e a adoção de iniciativas como a européia “Diretiva do Retorno”, que ameaça com o encarceramento prolongado (até 18 meses) e deportações massivas dos imigrantes, que enchem de medo e incerteza sobre o futuro os migrantes e suas famílias.
Deportações e rejeições não são os únicos danos que enfrentam os migrantes internacionais e suas famílias. Há outros danos que ocorrem desde antes da partida, durante o trânsito e o destino. Há uma multiplicação de atores e beneficiários, não sempre de maneira lícita e solidária. Há extremos que devem ocorrer. Há a necessidade urgente de irromper nessa distorção de vida com todas nossas forças de compromisso de fé e justiça, próprias da vida cristã.
Os paradoxos da migração: um desafio à consciência
Observamos paradoxos indicativos do absurdo a que chegamos: 1) Por não ter nada, os e as migrantes o abandonam tudo; 2) para darem-lhes vida e futuro à sua família, têm que deixá-la; 3) os e as migrantes empreendem caminho em busca da vida, mas podem encontrar a morte; 4) para existir, têm que passar por invisíveis nos lugares de trânsito e destino; 5) são induzidos a caminhos de alto risco, porém ninguém se responsabiliza por sua morte; 6) lamenta-se sua morte, mas não se faz nada de concreto para evitá-la; 7) embora viagem em grupos, vão sozinhas e sozinhos; 8) são condenados à clandestinidade, e são repreendidos por viajarem como ilegais; 9) são pessoas que requerem mais da proteção do Estado, e são os que menos a recebem; 10) negam-lhes os vistos, que lhes são exigidos e encarcerados porque viajam sem ele; 11) aspiram a uma vida melhor, e são condenados(as) a procurá-la transitando por pântanos, desertos e montanhas. 12) são os(as) que fazem as colheitas, mas lhes negam o alimento; 13) ofendem-nos(nas), e lhes dizem que sua presença é a que ofende; 14) acusam-nos(nas) de violentas e violentos, e são pessoas violentadas em seu corpo, sua família, seu desejo de vida e seus direitos; 15) chamam-nos(nas) de heróis, e são tratados(as) como criminosos(as); 16) forçam-nos(nas) a migrar, e os(as) chamam de desarraigados(as); 17) recebem-nos(nas) como trabalhadores, mas lhes negam o ingresso e a permanência como pessoas; 18) pedem-lhes a vida para a vida de outros, mas a negam para si e suas famílias. As e os migrantes, em resumo, são nossas e nossos mártires de hoje em dia.
Diante disso nos perguntamos: com que direito as e os migrantes internacionais e os deslocados internos são as vítimas inocentes da exclusão e da violência? Com que direito os transformamos em bodes expiatórios dos interesses e do benefício dos demais? Com que direito se lhes priva de vida quando são a vida mesma? Os integrantes da família dominicana vemos com profunda dor o sofrimento das e dos migrantes e suas famílias. Não podemos ficar impassíveis nem volver o rosto para o esquecimento e a insensibilidade.
2.- Iluminação
A migração à luz da palavra de Deus e do Magistério
Que nossa Fé e nossa práxis social seja a fé e a práxis social do Deus do caminho” (2 Samuel 7, 1-7): O “Deus da tenda de pastores”, que não quer uma casa de cedro, porque Ele não teve casa, mas ia de um lado para o outro dormindo no acampamento, caminhando com o seu povo. É a realidade do único fiel e justo acompanhante do povo Migrante: Este Deus, companheiro migrante, carrega sua trouxa, sobe nos trens, entra nas estações migratórias e no melhor dos casos fica para dormir nas Casas do Migrante, cruza desidratado o deserto, quase se afogando nos canais e no Rio Bravo, caminhando sempre sem abandonar os e as migrantes, caminheiros da esperança.
Em nosso trabalho solidário com os e as migrantes e deslocados queremos abandonar um sentimento meramente compassivo e assistencialista, para realizar um trabalho crítico, mobilizador, esperançoso, “Com os rostos sofredores que nos doem”, como nos expressam nossos Bispos latino-americanos e caribenhos no Documento da V Conferência Geral do Episcopado (Latino-americano e Caribenho), celebrada em Aparecida, Brasil em maio de 2007 (nn. 65, 410-430), para que na pessoa Migrante se dê o passo conscientizador da vitimização à subjetividade social, de tal maneira que se faça realidade a palavra do Documento Pontifício “Era Migrantes Charitas Christi”, tendo sempre em conta que os imigrantes “devem ser os principais protagonistas de sua pastoral” (n. 91).

COMPROMISSOS

Urge na América Latina e no Caribe um modelo de desenvolvimento alternativo ao atual, que é excludente. Marquemos um basta ao de sangrar dos povos que perdem crescentes fluxos de migrantes forçados. É mister favorecer e fortalecer o bem-estar da população, o emprego, a educação, a saúde, a cultura, assim como a procura e o estabelecimento de condições de verdadeira paz. Urgem políticas de Estado sobre desenvolvimento, paz e migração, que concebam a migração como uma alternativa mais de vida e não um recurso extremo de sobrevivência, como sucede até agora, e evitem a sangria de populações inteiras no interior de muitos países do Continente.
Urge também uma mudança de atitudes, de concepções, de vida diária, que nos envolva a todas e todos e não apenas às instituições do Estado. A Família Dominicana se sente convocada a renovar seu acompanhamento diário às pessoas deslocadas e às e aos migrantes internacionais e suas famílias. De fato, nosso compromisso é com todas as pessoas e comunidades forçadas a migrar destro e fora de seu território nacional.
Comprometemo-nos a vincular nossos trabalhos pastorais à sociedade civil, em solidariedade com os migrantes, em sua origem, transito e destino; a incidir na elaboração de leis e políticas migratórias com respeito aos direitos humanos das e dos migrantes e pessoas deslocadas, assim como no estabelecimento de condições de verdadeira paz; a monitorar as violações aos direitos humanos das e dos migrantes e pessoas deslocadas, e fazê-las chegar às instituições nacionais e internacionais correspondentes; a fortalecer o papel da família dominicana na atenção e acompanhamento das e dos migrantes e pessoas deslocadas; incorporar o conhecimento das migrações nos planos de formação religiosa e dominicana, como também nos planos de educação pública; implementar o trabalho em rede em todo o Continente para defender conjuntamente os direitos humanos das e dos migrantes e pessoas deslocadas; recuperar a história dos(das) migrantes e pessoas deslocadas, como condição para que possam transformar-se em novos sujeitos sociais de transformação.
A migração é um desafio e uma oportunidade para o carisma de São Domingos. Por este motivo é necessário que a compreendamos em toda a sua complexidade. A sociedade, os governos, a igreja e a Família Dominicana estamos chamados a enfrentar o problema, procurando a transformação das verdadeiras causas estruturais que as ocasionam de maneira forçada.


Cidade Juárez, Chihuahua, México, 4 de agosto de 2008.
Festa de São Domingos de Gusmão.

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